QUEM SÃO OS BASTARDOS INGLÓRIOS?
- Fernando Maia
- 8 de mar. de 2018
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de nov. de 2020
Muitas observações foram feitas aos aspectos históricos falsificados por Bastardos inglórios de Tarantino. Entretanto, esses aspectos estão abordados da forma mais fiel, pois não se trata da história contada pelos vencedores, mas sim de uma história que também se passa no interior do cinema e que não se distribuiu tão simplesmente entre vencedores e vencidos. Se Primo Levy nos falava da vergonha de ser homem depois de sobreviver aos campos de concentração nazistas, o cinema, que também foi (foi?) vítima de um grande e vergonhoso enfraquecimento, precisava (precisava?) se revigorar para continuar vivendo criativamente.
O cinema que nasceu com grandes pretensões de ser o impulso da invenção de uma nova liberdade, de novas possibilidades para o pensamento e para a vida, foi rapidamente engolido pela indústria de propaganda que fazia da força uma fraqueza ao espalhar, justamente, o terror e a submissão necessários à violência de nossos salvadores, fossem eles heróis das telas nazistas, das stalinistas ou das de Hollywood. Das massas sujeito passávamos para as massas assujeitadas. Mas, uma linha de fuga, bastarda e inglória, não parava de passar por um outro cinema que proliferava também, e apesar de tudo, na Alemanha e nos EUA. Por sinal, nos EUA, como era de se esperar, proliferou sempre às margens, exatamente o local dos excluídos da democracia (Altman, Cassavetes, Burnett...).
No filme de Tarantino encontramos imediatamente a situação do farejador atrás de uma ratazana astuta que sabe inventar caminhos inusitados e se tornar imperceptível em composição com as coisas. É a judia fugitiva do nazismo (duplamente perseguida: enquanto judia, foge do caçador de homens; enquanto mulher, foge do herói das telas alemãs) que, mesmo perseguida e vivendo clandestinamente na sua terra alemã, não deixa de passar no cinema, território delicadamente estabelecido em que constrói a resistência ao embrutecimento, os grandes filmes do próprio cinema alemão (homenagem explícita a Pabst). Sendo sensível aos pequenos e decisivos movimentos, ela sabe que um outro espírito ainda habita aquelas latitudes, sabe que a possibilidade de respirar sempre anda junto com a possibilidade de criar: o cinema e a vida poderiam ter um futuro em rima com uma vocação artística capaz de conectar o que foi desconectado (às vezes pela própria arte: Leni Riefenstahl) ou o que nunca apareceu como possível para liberar aventuras em vez de contê-las. Curiosamente ela se une a um negro, típico bastardo inglório das terras da “liberdade”. Tão bastardo que até mesmo alguns espíritos democráticos ao estudar as origens do totalitarismo puderam acreditar que o governo dos EUA havia estabelecido a igualdade entre os humanos, enquanto ali, diante dos olhos, índios eram exterminados e negros humilhados, excluídos, escravizados das mais diferentes maneiras. O caçador de homens (e talvez também a jornalista de espírito democrático) parece nem se importar muito com o negro, isso porque que ele aparenta escapar ao gênero com os quais lida o caçador.
Mas, ao lado dessa pressão sufocante da perseguição nazista, um outro grupo se destaca. Um grupo em colisão com o sufoco? Ou uma sufocação gêmea? Eis os autodenominados Bastardos inglórios. Mas, observando com cuidado, esse grupo não tem nada de bastardo nem de inglório (no fim, inclusive, carregarão todas as glórias e distribuirão o bem e o mal: quem carregará a cruz na testa?), mas se alimenta da mesma violência daquilo que combate. A entrada em cena do grupo dos EUA já explicita essa violência de uma sufocação gêmea. Mas cenas noir, western spaghetti e de humor resumem as aventuras ambíguas desse cinema que oscilava entre os independentes e as grandes produções. Uma possibilidade ainda habitava essas latitudes e Tarantino compõe com ela na própria forma do seu filme.
É no encontro explosivo dos siameses rivais na sala de cinema que os bastardos inglórios (os de fato: a judia e o negro) realizam a via traçada silenciosa e anonimamente. Por trás da tela e por trás dos projetores, os irmãos siameses se afogam em suas próprias produções. Os bastardos possibilitavam um sopro de vida despercebido, sempre animado, como toda criação, na contramão da glória.
No fim, as glórias para os que venceram, serão eles, agora, os novos arautos da liberdade que poderão identificar o mal como o que a eles se opõe e ocupar nossos pensamentos, entupir nossos canais de encontro com a proliferação infinita ou de bobagens premiadas ou de críticas e denúncias inteligentes diante do que “interessa”.
“A respeito de uma ideia qualquer destacada pela imprensa, diariamente, o público se divide em dois campos: os que 'concordam com essa opinião' e os que 'discordam dessa opinião'. Mas esses, não mais do que aqueles, não admitem que possamos nos preocupar, nesse momento, com outra coisa senão com a questão tal como lhes foi assim posta e imposta. Sós, alguns espíritos selvagens, estrangeiros, sob seus sinos de mergulho, ao tumulto do oceano social em que estão mergulhados, ruminam aqui e ali problemas bizarros, absolutamente desprovidos de atualidade. E são esses os inventores de amanhã.” (Gabriel Tarde).
Mas, em algum lugar (Nas telas? Nas ruas? Nas margens?…) algo se passa, um outro interesse…
Onde foi parar, afinal, aquele negro bastardo?
Sim, Tarantino (também um bastardo inglório?) é fiel à história, mas à história por vir.
Lançou a braba