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Cinema

  • Foto do escritor: Fernando Maia
    Fernando Maia
  • 8 de mar. de 2018
  • 4 min de leitura

Atualizado: 17 de nov. de 2020


SUDOESTE

O cinema brasileiro que alcançou o nível artístico dos grandes diretores mundiais com Glauber Rocha parece ter definhado completamente. Que alguns autores tenham produzido belas obras (Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho...), isso não impediu o enfraquecimento geral. O mesmo ocorria com nossa literatura e talvez o diagnóstico de Graciliano Ramos em Memórias do cárcere ("Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu de escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.") seja válido para ambos os casos.

Mas eis que surgiu a Retomada, entretanto, se a partir dela, nos deparamos com a realização de muitos filmes, isso significou um aumento produtivo, mas nada de interessante parecia surgir, apenas alguns sucessos de bilheteria, sucessos com a marca da televisão e seu compromisso exclusivo com o comercial (pode haver um comércio das artes, mas nunca uma arte comercial), algumas premiações entre amigos e patrocinadores. Um aroma de auto exaltação e de marketing rondavam o ambiente cinematográfico cada vez mais distante de alguma vocação artística. Por outros meios, a tristeza diagnosticada por Graciliano Ramos se manifestava, não mais uma ditadura, mas a exigência do cliché, seja na forma banal de crítica social, seja na infantilização de comportamentos, seja nas comédias que beiram a imbecilidade mais atroz. Junto com esses filmes, uma plêiade de críticos intelectuais se alimentava da besteira (comportamento típico dos intelectuais bem informados) e a reproduzia de forma nem sempre ingênua. Assim, pessoas excessivamente inteligentes com muita pompa e sob os holofotes capazes de ofuscar qualquer vergonha misturavam tudo (comportamento típico dos intelectuais bem informados) numa salada capaz de combinar Cidade de deus com Tarkovski!

Mas, sem muito alarde (como tudo que interessa), um vento anunciava a resistência serena da possibilidade da criação: Sudoeste de Eduardo Nunes. Longe da preocupação narrativa (a imagem não é narrativa por natureza, só por um efeito de montagem. Cinema desnarrativo é mais uma bobagem de intelectuais bem informados) capaz de colocar a preocupação com imagem em plano secundário (a quase totalidade da crítica cinematográfica consegue falar de um filme sem citar sequer uma imagem!), longe dos efeitos fáceis dos temas atuais que frequentam as mesas redondas das tvs e das redes sociais (procedimento típico das pautas “criativas” do marketing), longe das salas de aulas despertadoras de consciência (grande serviço deseducativo do modo de lidar com a arte), longe da facilidade da crítica (passamos da hora de nos livrarmos dessa noção que invade todas as partes e reforça a voz dos sábios que vão nos ensinar, àqueles que não pensam como eles, a escapar das manipulações) e de suas denúncias, mas tomando as imagens visual e sonora como elementos a conduzir efetivamente a montagem (as exigências do filme não se sacrificam à narrativa. Certamente o diretor será chamado a se “explicar” por isso e a tomar o rumo conveniente. Torcemos para que continue na errância), o filme tem um aspecto cada vez mais raro de cinema (mas é na raridade se encontra a força criadora, já a fraqueza se impõe pelo excesso, pelo reconhecido e pela balburdia que cria em torno dela).

Nitidamente o preto e branco e o formato extremamente alongado escolhidos não são gratuidades, são exigências de uma distribuição no espaço que destaca, como num quadro não perspectivado, as vidas que daí se soltam, por um momento, numa breve rajada se desgrudam do fundo que funde os homens na paisagem impessoal. Para a recomposição com o fundo e para destaque do fundo nos direcionam as varridas lentas e a fixidez serena, não gratuitas, da câmera. Essas vidas anônimas, mesmo destacadas pela brevidade da passagem de uma vida (o artigo indefinido parece definir todas as personagens e a história da personagem principal parece valer para todas as outras, uma vida…) são inseparáveis dos sons, das cores e do espaço que ocupam. Esquecemos rapidamente o nome das personagens, mas são inesquecíveis a mulher e sua cozinha, um banquinho na sombra do espaço fechado escuro e sonoro, sons de pratos e de água e de canto doloroso (um espaço feminino de acolhida, serenidade e cuidado que não se diz pelo universo masculino e nada pretende dele), o vento. Os homens, a amplitude aberta, o sal, o trabalho, o vento. As crianças, as vozes, um quarto acolhedor e ameaçador, uma fuga, temores, a chuva, a ternura, o vento. A bruxa, o mar, o som rangente das cordas, o vento... Seria interessante catalogar todas as personagens pelas composições em que entram (por sinal é impossível pensá-los sem as imagens como em todo bom cinema), pelos ritmos diversos em que pulsam (velocidades e lentidões que nos incluem na respiração daquelas vidas), pelos espaços ópticos e sonoros em que se desenham. Desse modo a vida em um dia da personagem principal se desdobra pelas muitas paisagens em que se compõe até o recomeço inocente na paisagem se abrindo de um amoroso sorriso chuvoso das crianças.

Fernando Maia

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