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Dogville (rápidas impressões)

  • Foto do escritor: Fernando Maia
    Fernando Maia
  • 12 de fev. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 17 de nov. de 2020


É quase uma unanimidade entender Dogville de Lars von Trier como sendo um teatro em tela. Mas talvez seja instigante abordar o filme sob outra perspectiva, afinal por mais interessante que seja, a remissão desse filme ao teatro parece enfraquecer, ou, pelo menos, ser insuficiente em relação a tudo o que ali se passa e que remete muito mais a forças em jogo num espaço restrito, a uma física dos encontros, do que a uma encenação de tipos sociais ou a uma ilustração de tese.

É próprio de von Trier estabelecer um espaço restrito em seus filmes, uma arena de combate (a cena inicial de Melancolia com a limousine da noiva presa na curva que dá acesso ao local dos encontros é quase cômica). Entradas e saídas são bloqueadas, ou extremamente difíceis de negociar, ou reservada para alguns, ou... Em Dogville não é diferente, entramos no ambiente que por um lado tem o bloqueio natural e, por outro, os bloqueios morais, físicos, políticos… Dentro do espaço assim limitado não temos casas, plantas, animais, móveis.. temos apenas marcações no chão e indicações verbais. As marcações são inicialmente filmadas de cima e devidamente nomeadas. Por essas marcações, (e apenas por isso?), somos levados a crer que se trata de teatro, de uma encenação retratando situações e tipos sócio-históricos (esse modo de entender é mortal em relação a Manderlay) ou servindo de suporte para a exposição cênica de uma tese, mas, por acaso, enquanto espectadores de teatro, vemos as marcações no chão do palco? Elas são vistas de cima como se fossem um mapa aberto com suas legendas?

É possível, certamente, encontrarmos autores teatrais, peças específicas para estabelecer uma influência, mas a pergunta retorna: isso dá conta do que está acontecendo? Se há teatro, é algo bem diverso da tradição, muito mais um teatro marcado pelo cinema do que o contrário. Parece não ser por acaso que a quase totalidade das leituras teatrais de Dogville levam a uma interpretação moral e metafórica do filme como se ele fosse uma história exemplar, uma tese edificante sobre o comportamento humano e não uma experiência dos afetos, tentativas de composição, mapeamento de modos de estar-junto (esse junto incluindo todos os vetores indicados, não somente as peças humanas). Não era esse o apelo aos imigrantes de todo o mundo?

Mas do que se trata então? Pensamos que é um tabuleiro de jogo com diversas casas, em cada uma delas a peça principal (a peça do narrador?) entra, compondo com o que há ali e de lá sai mais forte ou mais fraca. Há muitas possibilidades de combinação, de tentativas de fortalecimento, de estabelecimento de uma conexão em determinada casa. Há muitas expectativas no início, muitas promessas de bons encontros e aventuras em cada casa. É com base nesses encontros que a vila se reconfigura se orienta junto com a peça principal. Combates se travam nas casas, combates-contra repelem tudo o que julga e enfraquece, mas se conjugam com apropriações de forças, combates-entre que alimentam o acontecimento que é a vida da peça e do filme.

Só que o tabuleiro de Dogville não funciona na “inocência” dos encontros (a terra dos imigrantes não era tão acolhedora?), parece não admitir que a personagem principal se alegre, pois em cada casa que entra as promessas de fortalecimento se frustram (por toda parte, o enfraquecimento produzido pela culpa e pela dívida) e, conforme o jogo prossegue, as alternativas vão se reduzindo, até que todo o campo se alisa (se apagam as marcações) com a neve. Mais nenhuma possibilidade, nenhuma esperança. Fim de jogo (no more moves)? Uma tentativa derradeira abre uma última passagem na neve, passagem forjada no esforço supremo da humilhação oferecida pelo tribunal que dará o veredito final sobre o destino da peça principal, agora isolada, presa numa das casas, perseguida e violentada pelas mais diversas acusações. Último esforço de conciliação, última tentativa de encontrar uma possibilidade de movimento no tabuleiro branco por parte da peça que, de tanta fraqueza incorporada, só pode se arrastar no chão e se dirigir àqueles que a fazem culpada, ao poder de julgar reunido na única casa aberta do tabuleiro e suplicar por um possível, por um pouco de ar. A resignação parece ser a única saída.

Mas, o trilho aberto pela roda atrelada ao pescoço da peça já anuncia o golpe fatal: realmente não há mais movimentos segundo as regras do jogo, regras que traem a lógica dos encontros, é preciso romper para que alguma saída se abra e rearranje as relações de força em jogo. Não, o filme não moraliza (não faz uma escolha entre diferentes tribunais), é mesmo um grito pelo fim dos tribunais, do terrível poder de julgar a produzir a tristeza por toda parte. No tabuleiro de Dogville mais uma vez ressoam as vozes do corpo: para por um fim ao juízo. Da crueldade contra o suplício, da vitalidade contra a organização, da vontade de potência contra um querer-dominar, do combate contra a guerra (são essas algumas das características que Deleuze estabelece na afirmação da vida contra o juízo no artigo Para dar um fim ao juízo), nasce uma possibilidade de vida para a peça, por mais desesperada que seja a saída, por mais riscos que ela posa oferecer, trata-se de contra-efetuação, não de resignação.


Fernando Maia

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